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2003-09-24

A "República dos Juízes" e o Estado de Direito 

No Público de Sexta-feira, 19 de Setembro de 2003 , mais uma vez, Marinho e Pinto, felizmente, escreve ao contrário do coro dominante:

Pedofilia: as Vítimas, Os Arguidos e Os Juízes
Por A. MARINHO E PINTO


[As vítimas da pedofilia] "Pouca ou nenhuma atenção têm merecido daqueles que agora surgem arvorados em paladinos dos direitos humanos, mas que, em vez de pugnarem pelo total apuramento da verdade dos factos, parecem mais preocupados em imputar responsabilidades ao nosso sistema judiciário, como se fosse ele a fonte maior dos males com que a comunidade se debate."

A. Baptista Coelho (presidente da Ass. Sindical dos juízes Portugueses, in PÚBLICO de 14-09-2003).

Leio e fico estarrecido. Um juiz de um tribunal superior (embora com veste de sindicalista) vem invocar as vítimas de um crime para justificar a denegação em processo penal de direitos dos arguidos ou pelo menos para neutralizar as críticas que aquela denegação tem suscitado junto da opinião pública nacional e internacional, incluindo as de mais destacados professores catedráticos de direito penal e constitucional.

Um juiz de direito nunca deve invocar as vítimas de um crime para fundamentar decisões proferidas em processo penal. A um juiz só é lícito invocar (além dos factos resultantes do contraditório) o direito, enquanto condensação da lei, da ética, da equidade, dos valores superiores do Estado democrático e da dignidade do ser humano. A invocação das vítimas serve para justificar a justiça sumária, geralmente ditada pelos sentimentos irracionais das turbas, e não para fundamentar as decisões no processo penal de um Estado de direito.

Está historicamente demonstrado que, em regra, a invocação das vítimas não serve a justiça, mas sim a sua denegação. Geralmente, só se invocam as vítimas para justificar o aparecimento de novas vítimas ou as já existentes. E as piores vítimas que a história nos apresenta foram sempre feitas em nome da justiça. As organizações e os Estados terroristas invocam sempre as suas vítimas para justificar o surgimento de novas vítimas. Veja-se a espiral terrorista entre o Governo israelita e os grupos palestinianos radicais, em que os assassínios de dirigentes palestinianos (e de seus filhos, alguns ainda crianças) são justificados com as vítimas israelitas dos atentados suicidas e estas justificadas com aqueles assassinatos.

O mesmo acontece com os Estados totalitários e imperialistas. Salazar sempre invocou as vítimas do comunismo para perseguir e eliminar os opositores ao seu regime, fossem comunistas ou não. Também George W. Bush invoca as vítimas do 11 de Setembro para invadir países e fazer guerras à margem da legalidade internacional e mesmo para reduzir seres humanos à condição de objectos, retirando-lhes todos os direitos e toda a réstia de dignidade, como acontece com os prisioneiros da base de Guantanamo.

Mas o problema envolve também uma outra questão, qual seja a de caracterizar o estatuto jurídico-penal das vítimas de crimes. A regra em processo penal é a de que a vítima de um crime não tem interesses dignos de tutela processual penal e por isso não passa de mera testemunha. Se quiser ter alguma intervenção no processo, terá de se constituir assistente (pagando uma taxa, claro...), e mesmo assim a sua intervenção processual terá de se subordinar à do Ministério Público, de quem será apenas um simples colaborador.

O que quer dizer que a vítima de um crime não tem direito à condenação do criminoso. Ou melhor, a ocorrência de um crime não gera na esfera jurídica da vítima um direito subjectivo à condenação do autor do delito. Quem tem direito à condenação do criminoso é a sociedade organizada em Estado (mesmo nos crimes em que o particular pode impedir ou extinguir o procedimento penal), porque o crime, por violar direitos pessoais, ofende sobretudo valores essenciais da comunidade.

A violação dos direitos pessoais de uma pessoa concede-lhe o direito à indemnização pelos danos morais e patrimoniais, mas não à condenação criminal do lesante.

Tempos houve, porém, em que as coisas se passavam de outra maneira, isto é, em que as vítimas de crimes tinham um papel preponderante no processo de condenação. Foram tempos em que a justiça se confundia com a vingança e vice-versa. O triunfo da actual concepção (que retira às vítimas o direito à condenação dos criminosos e confere ao Estado o monopólio da administração da justiça de acordo com o direito e não com os interesses das vítimas) marca definitivamente a passagem da barbárie para a civilização.

Muitos, infelizmente, não assimilaram ainda essa evolução, já que, na falta de fundamentos jurídicos convincentes, invocam as vítimas para justificar perante a opinião pública (sempre receptiva, claro, a esses argumentos) os mais graves atropelos aos direitos processuais dos pretensos criminosos e, consequentemente, a necessidade e conveniência da sua condenação sumária. Para esses, a justiça continuaria a confundir-se com vingança, só que agora já não seria a velha vingança privada de outrora mas sim uma espécie de vindicta pública.

Num Estado de direito, a posição de um juiz, seja qual for a fase processual em que intervenha, deve ser sempre a de manter uma rigorosa equidistância entre os interesses punitivos do Estado patrocinados pelo Ministério Público e os direitos fundamentais do cidadão arguido patrocinado por advogado da sua confiança.

Um dos deveres mais sagrados de um juiz em processo penal é não permitir que, por decisões anteriores ao julgamento, a opinião pública possa formular um juízo definitivo de culpa sobre qualquer arguido. Só depois de esgotados todos os meios de defesa, incluindo o recurso, é que o veredicto de culpabilidade se pode tornar definitivo. É isto - e mais nada - o princípio da presunção de inocência.

Infelizmente isso não aconteceu no caso da pedofilia. As decisões do juiz Rui Teixeira, agredindo sistematicamente os mais elementares direitos dos arguidos, levaram já à criação de uma terrível situação de não retorno sobre a sua culpabilidade. E tudo isso numa fase processual em que aos arguidos não lhes tem sido permitido defender-se e em que nem sequer se pode falar de provas, mas apenas de meros indícios.

Algumas das mais importantes decisões do juiz do processo, bem como do Tribunal da Relação de Lisboa, do STJ e do próprio Conselho Superior da Magistratura fizeram com que a opinião pública portuguesa ditasse já uma sentença de condenação assente nesta viciada argumentação: os arguidos presos são culpados, até porque se o não fossem (e atendendo ao estatuto social de alguns deles), nunca a justiça lhes faria o que está a fazer; nem sequer os teria prendido. Não há nada mais perverso num Estado de direito.

Por isso é que agora o próprio sistema judicial também está em causa. No caso da pedofilia, os juízes foram tão longe que já não podem voltar atrás sem que a face da justiça portuguesa saia irreversivelmente conspurcada e eles próprios sejam igualmente postos em causa. E, tendo em conta a cultura dominante nas nossas magistraturas, quando se trata de salvar a face da justiça (leia-se da corporação judicial), tudo tem de ser sacrificado, sem apelo nem agravo, incluindo os mais elementares direitos humanos. Muitas decisões judiciais verdadeiramente ultrajantes para o Estado de direito são tomadas nos nossos tribunais unicamente para salvar a face da justiça.

Advogado, ex-presidente da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados


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